O Fantasma do Estúdio
A noite se encaminhava para a madrugada e, naquele casarão antigo de Botafogo, onde situava um dos maiores estúdios de pós-finalização, tudo transcorria normalmente. Ao lado do operador Bernardo, eu havia terminado de editar as imagens do comercial-mãe do meu cliente. Faltava apenas a sonorização para concluir o trabalho.
Acostumado a sair dos estúdios ao raiar do dia, vislumbrava a possibilidade de retornar ao meu lar, doce lar, no máximo, às 2 horas. “Adiantamos bem”, disse ao Bernardo, que, entre faminto e exaurido, sugeriu-me: “Já que falta pouco, que tal pedirmos uma pizza?”
Nos anos 1990 – e acho que até hoje – 9 entre 10 operadores, RTVCs e diretores de criação tinham à disposição um “farto” cardápio de duas opções nas altas horas: ou pizza ou China in Box. E não deu outra, a primeira opção prevaleceu.
Era 1 hora da manhã, silêncio no casarão do estúdio, não se ouvia nem o barulho do ar-condicionado. Do lado de fora, apenas um vigia sonolento.
Nós, tranquilamente, matávamos a terrível fome em uma sala próxima à copa. Quando, ao circunvagar o olho pelas paredes e janelas do local, resolvi tocar no assunto:
– Puxa, Bernardo, este casarão parece mal-assombrado, hein!
– Pior que há histórias…
– É sério?
– A gente tem escutado, de uns meses pra cá, ruídos estranhos vindos lá da ilha.
– Logo onde estamos trabalhando? – exclamei, sem deixar de saborear a deliciosa fatia de pizza.
– A galera que tava editando, ontem mesmo, ouviu. É um barulho esquisito…
– Tá querendo botar medo, parceiro? – alimentando-me de mais curiosidade.
– Tô não. Eu já até me acostumei, sabe. Sempre acontece nas madrugas… – disse Bernardo, em um tom sereno, acabando de engolir seu último pedaço de frango com catupiry.
Voltamos à ilha de edição e fiquei um tanto indignado com a história contada pelo operador de vídeo. Era só o que faltava – pensei – àquela hora, exausto, doido para dormir, e ter que escutar bobagens. Mas melhor ter ouvido isso do que ser surdo!
Bernardo, convicto, continuava seu discurso.
– Noite dessas, estava editando sozinho e ouvi. O violão de um dos diretores tocou sozinho. No início, fiquei apavorado, mas depois me acostumei. Fazer o quê? Tenho que encarar o trabalho com fantasma ou sem fantasma. É vida que segue!
– É vida que segue… – repeti a frase, incomodado com a passividade do operador diante desse mistério.
Assim que verificamos o CD, contendo a trilha sonora e a assinatura eletrônica (como era chamada a “audiomarca” naquele tempo), Bernardo torceu o nariz.
– Huumm… o áudio tá fazendo um chiado!
– Não é possível! Eu o verifiquei, antes de sair da agência. Bem, eu tenho uma cópia – disse a ele, entregando-lhe outro CD.
Bernardo abriu o estojo do CD-player e substituiu o disco.
– O chiado continua! Alguma coisa sujou a gravação! – enfatizou o operador.
– Não acredito que terei de pedir à produtora para refazer o serviço!
– E o pior, não vai dar para terminarmos tudo hoje.
– Merda! – esbravejei.
Sem mais nem menos, caminhando sem direção pelo estúdio, deparei-me com um cesto de lixo, cheio de papéis e detritos, de onde saía uma trilha (não sonora) bem rente à parede, que seguia por trás do rack dos equipamentos. Novamente, ouvimos o chiado.
– Não é do CD! É o fantasminha dando o ar da graça! – enfatizou Bernardo.
– Meu amigo, presta atenção! Eu não acredito nesse fantasma. E lhe garanto que vou desvendar o caso. Pode me ajudar?
Bernardo levantou-se da cadeira em que estava e pôs-se a inclinar um dos racks para dar passagem a mim.
– A casa deixa a galera comer dentro da ilha? – perguntei de forma provocativa.
– Deixar, não deixa não, você mesmo sabe que é proibido. Mas sabe como é, né, existem pessoas que forçam a barra. Hoje, no início da noite, por exemplo, comeram aqui.
– Percebi.
– Sempre sobra pra mim.
– E a moça da limpeza?
– Ela faz o serviço dela, de segunda a sexta, mas às 5 da tarde, pica a mula!
– Pois eu acho que deveriam contratar uma faxineira para o turno da noite, viu! – disse enquanto examinava o chão.
– Por que? Tá muito sujo aí atrás?
– Além de sujo, nós temos a companhia de um…
Nem completei a frase e fui interrompido por Bernardo: – Escutou?!
O relógio marcava: 1h45min. E pode acreditar, caro leitor (a), começava naquele instante um incrível e melodioso som ao redor. No início, um acorde aqui e outro ali. Depois, ganhou ritmo e volume. O tal fantasma gostava mesmo de fazer um solo e, mais uma vez, o violão de um dos diretores do estúdio foi o instrumento escolhido para propagar sua arte.
Como eu já havia observado um pequeno buraco, no rodapé da parede, por trás dos equipamentos, não perdi tempo e chamei Bernardo para que me acompanhasse até a outra sala.
Em lá chegando, liguei a lanterninha do meu chaveiro e me aproximei do violão tocador. Eis que encontro a assombração: um camundongo chinfrim, com uma mancha branca na barriga, de perninhas curtas, escorregando-se em ziguezague pelas cordas do violão. Por estar de través, a posição do instrumento facilitava a ação do bichinho.
Orgulhoso e todo prosa pela descoberta do misterioso caso, imitei Sherlock:
– Elementar, meu caro Bernardo!
– Então este é o fantasma do estúdio?!
– Antes fosse. É só um rato de ilha! – respondi ironicamente.
Àquela hora da madrugada, a nossa gargalhada ecoou pelo casarão antigo de Botafogo.
Jorge Ventura é poeta, ator, jornalista e publicitário.
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